Decidimos fazer o percurso por terra. O casamento de voos, as conexões entre aeroportos e os horários de chegada e partida, não nos deixavam muitas escolhas. Além disso, o valor das passagens compradas quase de véspera, era bem melhor na opção “Autobus”. Além disso, essa é uma boa forma de deixarmos uma menor pegada de carbono.
Uma interessante surpresa: nossa motorista é uma mulher. Em outras ocasiões vi até três ou quatro homens executando o trabalho que ela faz sozinha: dirige mais de oito horas sem revezamento e sem perder a leveza, organiza maletas, orienta pessoas, explica e convence a todos o fato de termos que pagar 1€ se quisermos usar o toalete a bordo. Dá os avisos e orientações pelo sistema de som interno e ainda resolve com maestria problema criado pelo pessoal de reserva com relação a ocupação de acentos. Deu trabalho convencer uma senhora chinesa a aceitar um acento diferente do que constava em seu bilhete. O ônibus da ALSA é grande e confortável. Equivale internamente a um avião. Com a diferença de ter Wi-Fi grátis, para compensar o banheiro pago.
Por volta da meia noite, já estamos entrando na Espanha. Consulto o mapa eletrônico e vejo que cruzamos o rio Guadiana. À esquerda, passamos em frente a um Hotel Mercure, em seguida um outro de mesmo nível, chamado Lisboa. Estamos em Badajoz. Curioso isso de cortarmos a cidade por dentro do centro urbano. Imagino como seria fazê-lo em horário de pico.
Às 6:20h (horário português), chegamos a Madrid. Desembarcamos com a ilusão de havermos chegado uma hora mais cedo. Na “Estación Sur de autobuses”, verifico que o relógio do telefone celular não se ajustou automaticamente. Avanço uma hora para sincronizar com o horário de Madrid, que curiosamente é o mesmo de Berlim, por decreto do ditador Franco, que segue como herança deixada para a democracia.
Cris dormiu todo o trajeto desde nossa única parada em Cáceres, até o nascer do sol. Eu cochilei durante uma hora mais ou menos. Até despertar com torcicolo. Tenho inveja de sua capacidade de desconexão e da sua flexibilidade. Uma nômade perfeita.
A estação rodoviária de Madrid é bem melhor que sua irmã lisboeta. Subimos ao piso superior, pelas esteiras rolantes e buscamos um café. Os banheiros, diferentemente de Lisboa e do ônibus, são grátis. Aproveitamos para fazer alongamentos e trocar ideias sobre o futuro que nos aguarda. Planos para a vida espanhola e conclusão de vários textos.
O segundo ônibus sai no horário. Olho o relógio, meio dia e meia, hora de Madrid. Enquanto viajo, aproveitando a excelência da conexão a bordo e a fantástica uniformidade da estrada que se desenrola pelos belos campos de Castilla la Mancha. Me ponho a brincar de fazer perguntas para mim mesmo.
É possível escrever bem, no idioma natal, vivendo no exterior? Respondo que sim. Casos concretos que me vem à cabeça: Jorge Amado que escrevia entre Salvador e Paris. Ou mais modernamente, Chico Buarque que produz seus livros entre o Rio e a capital francesa. Antes dele, o campeão mundial de obras traduzidas e mais vendido autor de língua portuguesa vivo: Paulo Coelho, hoje vivendo na Suiça. Se quisermos buscar exemplo entre clássicos e premiados, encontramos muitos. Lembro do mestre José Saramago, que em 1991 instalou-se nas ilhas Canárias para oito anos depois receber o primeiro Nobel de lingua portuguesa.
Por que isso ocorre, como se dá a inspiração?
Acho que duas coisas contribuem principalmente para tal. O afastamento das pressões e o estímulo criativo do novo contexto. Por isso também, abracei de coração a ideia de mudarmos definitivamente para Espanha.
Costumo dizer que existe literatura de viagem e literatura em viagem. Tento fazer um pouco de primeira, mas me encanto com a segunda. Escrever sempre me dá mais prazer do que ler. Contraditório? Não para mim. Escrevo como um processo de catarse de dor e prazer, ambas experiências no final me deixam melhor. Enquanto a leitura me propicia apenas uma dessas alegrias. Às vezes sorrio internamente com situações e imagens criadas pela minha mente irreverente. Isso me diverte e me deixa em boa companhia, esteja só ou numa multidão.
Pela janela, vejo a Espanha de hoje. Para mim, um exemplo de sucesso na fórmula mágica de mesclar o tradicional e o moderno. Lado a lado, encontramos oliveiras que produzem o fantástico azeite Mediterrâneo, com modernos moinhos de vento de alta tecnologia. Fazendas inteiras de geradores eólicos.
Enquanto me embriago com a paisagem deslumbrante dos campos de Castilla, imagino que a qualquer momento podemos dar de cara com o próprio Quixote cruzando a estrada. Quem sabe, a vida é cheia de surpresas. Chegamos a Benidorm pouco depois das três da tarde. Lá se vão quase 24horas desde a última partida. Cortamos a península Ibérica de oeste a leste. Só que desta vez, com o gostinho de estar chegando em casa.